HORÁRIOS CRUZADOS
A 7 de julho de 1698, o leitor Molyneux, casado com uma mulher cega, escreve uma carta ao filósofo John Locke sobre um problema que o aflige. Se um cego de nascença aprendeu a distinguir um cubo de uma esfera através do tacto, conseguirá ele, caso uma operação lhe dê o sentido da visão, distinguir essa esfera e esse cubo vendo-os somente, sem nunca lhes tocar? Locke, e os cientistas atuais, respondem que esse ex-cego não tem nenhuma certeza sobre a forma do que vê, que essa associação entre o cubo tacteado e o cubo visto não é imediata, ainda que ela possa ser activada, treinada e afinada com a repetição de experiências. Na verdade, o (re)conhecimento visual não é uma faculdade inata, senão na medida em que se encontra latente e pode ser desenvolvida. Ver não é olhar, olhar não é reparar, reparar não é fotografar. Ver é um sentido expectável. Olhar é recortar o que se vê. Reparar é enfatizar o que está recortado. Fotografar é capturar o sentimento que se foi formando entre o sentido expectável e a imprevisibilidade do recorte. É por isso que as fotos de Bernardino Pires são exercícios de aproximação entre o objecto (re)visto e os seus múltiplos reflexos.
Dois comboios cruzam-se numa estação: por momentos, X olha Y, que olha Z que olha alguém ou alguma coisa. Só o olhar do fotógrafo, o que tira a foto, apanha todos os olhares. Esse olhar, todavia, está oculto, porque não o imaginamos sequer, e ninguém o vê. Descrevemos a foto como se ela fosse o nosso ponto de vista. Descrevemos todos os olhares, menos um, o do fotógrafo. Ainda que hoje cada um de nós tenha no bolso uma máquina fotográfica com mais capacidades técnicas que as que Bernardino Pires possuía na sua Zeiss Super Ikonta, fotografamos hoje como vemos, sem reparar no recorte da imagem, no porquê desse recorte. Disparamos matando o objecto, mea culpa, mea culpa, minha tão grande culpa.
Bernardino Pires (Fotografia) Maria Luísa Malato (Texto) 2025 Bernardino Pires e a Revolução. O Preto O Branco e a Cor. CCDR Norte e in-libris